Existe um universo muito particular no cinema que me fascina mais do que qualquer outro. É aquele tipo de filme onde uma pessoa, ou grupo delas, tenta sobreviver a uma praga, disseminação de vírus, etc, que transforma as outras pessoas em monstros, na sua maioria das vezes zumbis. Não me encanto muito pelo gore e tripas voando na tela, o que me faz parar para ver um desses filmes e sua profundidade. Como cada personagem reage àquela realidade absurda. Pois bem, Eu Sou a Lenda (traduzido erroneamente para o português, já que o nome deveria ser Eu Sou Lenda) é um desses filmes, pena que o roteiro não está lá para ajudar.
Vamos à história, que você já deve saber: Robert Neville (Will Smith) é um cientista que vive numa NY devastada por um vírus que: ou mata ou transforma as pessoas
Primeiramente, a atuação de Will Smith é espetacular. O personagem do Fresh Prince está isolado de toda convivência humana nos últimos 3 anos e desesperadamente tenta manter sua sanidade. O primeiro e parte do segundo ato nos apresentam ao dia-a-dia de Neville: seus passeios pela desértica NY, suas tentativas de encontrar outros sobreviventes, as pesquisas que ele faz para tentar descobrir uma cura para a praga, etc. Passamos a conhecer a rotina que o personagem criou. Mas mesmo assim ele é privado da coexistência com outros seres-humanos. Uma maneira que ele encontra para não se esquecer disso, e a interação com manequins que ele mesmo espalhou numa locadora de dvds. Mesmo você achando que o cara é louco por estar conversando com bonecos, ele não está, os bonecos são âncoras emocionais que prendem o personagem à realidade que vivia no tempo em que o mundo era normal. Em um dos momentos chaves do longa, ele vê um desses bonecos fora do lugar. Tal situação deixa em cheque, por ele mesmo, sua sanidade.
Ainda falando
Falando dessa cena, embarcamos numa situação de imersão total. O que vemos na tela são somente sombras e alguns flashes da lanterna do personagem de Will Smith. O espectador fica totalmente “dentro” do filme nesse momento, um belo trabalho do diretor Francis Lawrence, oriundo dos mundos dos clips, mas que sabe dirigir um filme, seu outro trabalho é Constantine.
As cenas da NY vazia já valem o preço do ingresso. Mas os vampiros... sei não heim. O diretor podia ter optado por fazer uns monstros mais reais, usando atores de carne e osso ao invés de monstros
O engraçado é que os monstros aqui tem um certo nível de consciência, diferente da versão de 1971 onde os seres eram organizados, falavam e agiam como fanáticos religiosos. Aqui eles são como animais selvagens e o conflito entre Neville e um grupo deles acontece por causa desse mínimo nível de consciência. Pena que o roteiro seja tão burro de não permitir que o brilhante cientista note tal nível inteligência dos bichos.
Pronto, chegamos aonde eu queria. Se o filme tem uma direção boa e uma atuação melhor ainda, o que de ruim pode acontecer? Eu te respondo: Akiva Goldsman. O roteirista, Mark Protosevich está rodando com essa reinvenção da obra de Richard Matheson há anos. Ai um belo dia Akiva Goldsman leu a tal adaptação. Ok, tudo lindo, mas vamos um pouco à aula de história: Mark Protosevich escreveu o roteiro de A Cela, aquele filme com a bunduda J-Lo onde ela entra nos sonhos de um psicopata e Poseidon, remake do filme O Destino de Poseidon de 1972, ele é o cara que foi contratado para roteirizar também o filme do deus nórdico Thor para a Marvel. Na minha opinião, A Cela se vale pelas belas e aterrorizantes imagens do mundo dos sonhos do psicopata Vicent D´Onofrio e Poseidon só vale mesmo pela Emmy Rossum e pela morte da irritante Ferggie logo nos primeiros minutos de projeção. Mas até que os roteiros do cara são equilibrados e sem rombos na trama. O que não é o caso de Goldsman, só pra você ter uma idéia, alguns dos roteiros escritos por esse ele são: Batman Eternamente, Batman e Robin, O Código Da Vinci e mais algumas outras peneiras.
Aposto que os maiores furos e coisas inexplicáveis
Além de ter uma personagem fraca, e pentelha, a talentosa atriz brasileira Alice Braga parece intimidada pela presença de Will Smith. Nas cenas em que os dois interagem fica claro que Alice não está totalmente à vontade. Mas isso não é culpa dela. Podem até mesmo me chamar de implicante, mas a culpa é SIM do roteiro. Nele a personagem, que poderia ser muito melhor aproveitada, é uma espécie de, na falta de adjetivo melhor, louca. Anna tem respostas que não convencem ninguém e não justifica como sabe de certas coisas impossíveis de serem deduzidas.
Já que entramos no terceiro ato da coisa, vamos falar do desfecho do filme. Em entrevistas recentes, Lawrence, o diretor, disse que o final idealizado por ele e Akiva era diferente do que foi para a montagem final do longa. Não fica claro, mas deduzimos que ele preferia o outro final, o mais filosófico e menos, digamos, feliz. Sério mesmo, o final “a profecia se concretizou” tá mais do que batido, mas isso é coisa de estúdio.
Eu Sou a Lenda não é o filme definitivo da obra de Matheson, é superior ao filme de 71 e não tem o tom trash do de 64, mas mesmo assim a mão de Akiva Goldsman pesou sobre mais um filme, matando o que estava indo bem do meio pro final. Vale mesmo é o talento do orelhudo (e mais forte a cada filme) Will Smith e pelas incríveis imagens de NY desértica.
Thiago,
Gostaria de agradecer pela crítica, lendo o que escreveu pude me dar conta e ser sensível a algumas coisas que haviam passado despercebidas quando assisti ao filme no dia seguinte ao da estréia, um sábado chuvoso em Copacabana. Mas, após a sessão, fiquei com uma sensação de que já havia visto aquilo, uma sensação de reprise. Os filmes dos quais me lembrei foram A Hora dos Mortos-Vivos, Os Mortos se Levantam, A Volta dos Mortos-Vivos, etc., como você bem chamou a atenção:
“(...) aquele tipo de filme onde uma pessoa, ou grupo delas, tenta sobreviver a uma praga, disseminação de vírus, etc, que transforma as outras pessoas em monstros, na sua maioria das vezes zumbis.”.
Que no caso do filme foi um vírus, mas poderia ter sido um gás qualquer, uma chuva contaminada com sei lá o quê, ou qualquer outra coisa.
Foi isso que me veio após ver o Eu Sou a Lenda, de novo apenas a solidão de Smith na Nova York devastada. Solidão que afinal, não é tão nova assim (e isto não havia me dado conta), permitindo-nos a equiparação de Smith com Hanks e de Sam com Wilson.
Outro ponto interessante é o que chamou de âncoras emocionais, e como estas servem de “contato com a realidade”, insistindo na própria unidade psíquica do personagem e não o deixando “cair em desvarios”.
Abraços,
Pedro
Valeu Pedro!!! muito obrigado pela... critica da critica cara! Volte sempre e fique a vontade para falar o que quiser! Espalhe para os seus amigos sobre o Hamburguerama!
Abraços!!!